quinta-feira, 11 de junho de 2009

Sábado à noite: Jamie Sullivan

Jamie Sullivan enumerava silenciosamente as razões para não gostar daquela mulher. Não tinha a obrigação de aturar isso. Estava enfrentando uma situação difícil: sem emprego há mais de um mês, o maldito aluguel estava atrasado há quase três, e seu namorado aparentemente decidiu que monogamia é muito fora de moda. Não era nem um pouco fácil manter um apartamento como o dela, que chegava a custar mais da metade do salário que recebia por dançar semi-nua naquela espelunca. Mas o que podia fazer? Daniel a havia deixado na mão. Ele era quem arcava com as despesas de Jamie. E agora que deixou de ser parte da sua vida ela não tinha mais como sustentar aquele apartamento gigante sozinha. Os 'bicos' que resolvera fazer não haviam funcionado. Ela era péssima entregadora de pizza, recepcionista, assistente, ou qualquer outra coisa que envolvesse chegar no horário. Porém, descobriu que tinha potencial para trabalhar como modelo fotográfica, e usava desse artifício para ganhar alguns trocados. Inclusive, esse era o motivo da sua demissão repentina. Ela ultrapassou toda e qualquer barreira quando decidiu que o galpão onde dançava daria um ótimo cenário para um photoshoot novo. Obviamente, o dono do local não gostou muito, e exigiu ganhar parte do lucro de Jamie. Não chegaram a um acordo, Jamie foi despejada sem dó nem piedade.
'Quanta injustiça', ela ainda resmungava sempre que lembrava do que havia acontecido.
Aquela noite havia sido péssima em possivelmente quase todos os sentidos. Tentou lembrar-se do real motivo pelo qual havia aceitado aquele convite. Não conseguiu. Estava no fundo do poço, claro que havia sido essa a razão. Precisava de dinheiro urgentemente, e a ruiva disse que pagaria bem.
Deitou-se de qualquer maneira no sofá e ao fechar os olhos, dormiu. Seu sono era limpo, profundo. Imagens claras dos acontecimentos recentes começaram a chegar, todas de uma vez, em sua mente. Daniel saindo pela porta da frente com um sorriso maldoso de quem não se importa; ela mesma sendo pega em flagrante enquanto tirava as fotos no galpão; aquele baixinho obeso idiota, seu chefe, que tentou de todas as maneiras persuadi-la a dividir injustamente seu lucro com as fotos; suas preocupações com dinheiro e em como em breve estaria na rua; e, finalmente, aquelas mãos estranhas, livres em seus cabelos; na estranha sensação de que elas pertenciam ali. Tentou se livrar desses últimos pensamentos. Era uma tarefa quase impossível. De repente, viu-se sufocada, aos prantos, cheia de ódio. Jogou o celular contra a parede, e o mesmo se espatifou em mil pedaços. Sentiu como se aquele ato fosse seu cano de escape. Viu-se absorta num inútil conforto, e ao não conseguir se conter, disparou pela porta.
Jamie acordou e sentiu o rosto molhado. Enxugou as lágrimas e seguiu cambaleando, sonolenta, para a cozinha. Serviu-se de uma xícara de café bem amargo e sentou-se à mesa. Olhando para os restos do seu celular, ela se arrependeu de tê-lo quebrado. Uma despesa a mais. Pesou suas opções e não viu mal algum em tentar de novo. Afinal, aquele havia sido apenas um mal começo. Era bem melhor pensar assim.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Por Trás Das Lentes: Nicole Stevens

Era inverno de 1998 quando Nic Stevens descobriu o que queria. Sentada à beira da lareira ela observava a enorme janela da sala com um fascínio peculiar. Não estava olhando para uma simples janela. Na verdade, não era exatamente isso que lhe interessava. O que prendia sua atenção era a paisagem. A janela apenas tornava o enquadramento ainda mais interessante na perspectiva da linda garotinha de 11 anos. Os pinheiros mal balançavam, apesar do vento forte lá fora. O inverno estava começando a apertar, e Nicole não podia evitar imaginar os pinheiros cobertos por neve. Sempre adorou ver aqueles pinheiros branquinhos. Lembrou-se das histórias que ouvia quando pequena e riu do tempo em que sua avó a enganava sobre o glacê no topo das árvores.
O dia de Ação de Graças estava chegando e a menina, que sempre foi muito animada com as festas de fim de ano, ainda não conseguia preencher o vazio que sentia pela perda da sua avó, que falecera Dezembro passado. Desviou os olhos da janela e olhou para os porta-retratos na parede. Quanta falta sua avó lhe fazia. Nicole sempre a viu como uma amiga mais velha, do tipo que faz o que uma mãe faz. Do tipo que fazia o que sua mãe nunca fez. Podia contar nos dedos as vezes que vira sua mãe sóbria, ou sem efeito de qualquer tranquilizante barato. Durante toda a infância Nicole rezou para que sua mãe dividisse com ela a mesma atenção que dava àquela garrafa de whisky. Quando sua mãe morreu ela não sentiu tristeza. Por mais que fosse difícil a perda, ela só conseguia imaginar que agora sua mãe não lhe faria companhia pelo fato de não poder, ao invés de não querer. Talvez, em algum momento de sua vida, Margareth Stevens tenha desejado ficar ao lado da filha. Ela apenas nunca manifestou tal vontade, especialmente aos olhos de Nic. Acreditava que sua avó possuíra o espírito certo de uma mãe. Nunca lhe passou pela cabeça que Isabel só agia daquele jeito para suprir as necessidades da menina, compensando os erros de Margareth. Isso não parecia certo, e estava longe de ser verdade. Ao contrário do que muitos familiares pudessem pensar, Isabel realmente amou sua neta até o último instante de sua vida.
Ainda observando o lado de fora, Nicole pôde ver os primeiros flocos de neve caindo naquela tarde. Imaginou que em pouco tempo os pinheiros estariam cobertos, e desejou correr para contar à sua avó. Por um segundo havia esquecido que isso já não mais seria possível. Aos poucos a claridade do dia ia sendo consumida pelo início da noite e era difícil dizer quando a neve transformara-se em chuva. O desapontamento tornou-se visível nos olhos daquela pequena figura sentada sozinha à beira do fogo. Olhou novamente para os porta-retratos na parede, e voltou sua atenção aos pinheiros e à chuva que lavava a neve já acumulada. A idéia de poder 'congelar' o momento anterior ao temporal, quando ainda contemplava os flocos de neve caindo, pareceu-lhe bem agradável. Não, enganava-se. A idéia lhe era vital. 'Vovó, quando eu crescer quero ser fotógrafa' disse baixinho e sorriu.


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O cansaço tomou conta do seu corpo. A noite passada havia sido exaustiva demais. Jogou-se de qualquer maneira no sofá e desejou dormir logo, embora soubesse que isso não seria fácil. Odiava dormir exausta. Em dias assim, Nicole vestia-se na camiseta mais velha e confortável que pudesse encontrar, preparava o indispensável chá de hortelã que tomava toda noite, e esperava relaxar enquanto assistia a qualquer coisa interessante que estivesse passando em um dos 400 canais de sua TV. Geralmente parava no Animal Planet. Adorava aquele programa sobre os lêmures, mas nunca conseguia lembrar do nome. Não tinha mesmo muito tempo para televisão. Não costumava sair, mas sempre estava envolvida em algum dos seus trabalhos.
Nicole havia se tornado uma mulher. Aquela garotinha frágil ganhara corpo e tornara-se forte. Seus cabelos continuavam vermelhos, embora agora usasse-os curtos e meio bagunçados, nada igual aos cachos e fitas que usava quando criança. Não era alta, mas estava feliz com seus 1,60m e 55kg, que podiam variar para mais ou para menos em seu período menstrual. Seu rosto, milagrosamente livre da maioria das sardas que possuía quando criança, tinha traços finos e delicados. Ela era o tipo de mulher que conseguia ser atraente sem ser óbvia ou vulgar. Era uma beleza diferente, exótica.
Sem perceber que esquecera de adoçar sua bebida, ela pegou a xícara de chá e encostou-se na bancada da cozinha. Apoiou o braço na bancada enquanto despreocupadamente tomava goles do seu chá incrivelmente quente. A falta de açucar não lhe incomodou. Na verdade, ela até gostava de sentir o sabor completamente natural que as folhas de hortelã deixavam na água. Não fazia muita diferença. Do lugar em que estava podia ver as fotos espalhadas na mesa da sala. Tanta coisa para organizar, e ela havia esquecido completamente. Foi em direção às fotos, encostou a xícara já quase vazia e apoiou as duas mãos na mesa de madeira. Várias expressões a encaravam de uma só vez. Nicole adorava saber que havia capturado a essência daqueles momentos. Seu trabalho era basicamente isso. Capturar essências. Fotografar era uma coisa muito natural para ela. Ela era capaz de parar o tempo com um clique, e ainda fazer sobressair o elemento que desejasse. O que mais gostava na sua profissão era a liberdade de interpretação que podia trazer às pessoas. Essas fotos haviam sido recentemente premiadas numa exposição local. Nicole havia se tornado uma ótima profissional. Não só isso, acima de tudo, ela era uma ótima pessoa. Cresceu lembrando dos ensinamentos da sua avó, e em como fez falta ter uma figura familiar presente em sua vida. Tudo que realizou, sua ida à faculdade, seu primeiro trabalho para uma revista, sua primeira exposição, tudo isso ela sentia que devia à sua avó. O que quer que fosse que Nicole achasse que fosse deixá-la orgulhosa.
Organizou todas em uma pilha, e deixou no canto da mesa. Outra hora podia guardá-las propriamente. Agora ela já estava se sentindo mais relaxada, sabia que seria bem mais fácil dormir. Deitou-se em sua cama, e sem tirar a colcha por completo enfiou-se por baixo dos lençóis. Olhou para o teto e suspirou, tentando mandar embora parte de suas preocupações, a maioria com os trabalhos que ainda teria que entregar. Fechou os olhos. A quem queria enganar? Depois de hoje ela não sabia se estaria empregada pela manhã. 'O que diabos foi que eu fiz? Merda, Nicole!'